sábado, 19 de maio de 2012

Robert Nathaniel Cory Bryar

"Vocês são fortes e fodas, não importa o quanto as pessoas lhe digam o contrário. Eu sei o quanto é difícil perder um ídolo, o quanto é doloroso, eu sei que você também morre aos poucos por dentro por isso, o quanto é triste saber que aquela pessoa que deu sentidos a muitas coisas na sua vida não está mais lá. Mas por favor, não se desmanche em lágrimas a todo momento, mostre para si mesmo que seu sorriso é lindo, seja feliz por saber que aquela pessoa esteve lá um dia. E pode ter certeza: você pode encontrá-la nos seus sonhos mais bonitos".

terça-feira, 8 de maio de 2012

Círculo de Cores pt IX (final)


Um mês depois, tomei coragem para ir a sua casa. Seus pais deixaram tudo como estava antes, dizendo que não tocar na ferida faz parte da cicatrização. Eu queria pedir a bolsa jeans. Só isso dela que eu queria. Fiquei satisfeito quando seu pai passou o objeto para minhas mãos, onde fiquei longos minutos apreciando os penduricalhos. Antes de sair, num ato automático, olhei para a estante das bonecas.

Vazia.

Passadas algumas semanas, quando já não dormia mais agarrado com a bolsa vazia, decidi que precisava continuar a viver, apesar de.
Resolvi colocar a bolsa em cima do guarda-roupa, onde olharia apenas quando meus olhos fizessem questão de lembrar. Toquei a caixa menor que havia sobrado naquele dia em que Mi arrumou meu quarto, e num ato curioso, a abri. Barbie. Em vestido rosa brilhante. A última que sobrou de sua meninice.

E, bem, foi isso que eu vi. Depois daquela quarta feira de julho, tudo o que precisou ser feito assim o foi.

Psicólogos foram pagos para os presentes na cena, inclusive para Nicolas e eu. Mas não acho que tenha adiantado de muita coisa.

O parque ficou fechado por um tempo, mas retornou a suas atividades conforme Milena caía no esquecimento.

Nicolas e eu nunca falamos muito sobre isso. Nick ficou um mês sem falar absolutamente nada com ninguém e emagreceu muito, o que denunciava sua falta de apetite.  Ele nunca me contou o que sabia. O que você leu aqui é apenas o que eu, Eduardo Martins, sei. Apenas o que vi em determinado tempo no espaço.

Seu egoísmo e poder demais (decidir privar-se de viver). Porque ela não morreu. Suicidar-se é um corte muito mais dolorido e complicado de costurar.
É uma verdadeira pena. O que aconteceu com ela. Com todos nós e nossos jeitos pesados de continuar a viver. Apesar de.

E não importa com quem eu fale ou as perguntas que eu faça, ela sempre vai ser uma incógnita. Milena Linzzaro vai ser sempre essa dúvida, esse quebra-cabeça cheio de peças faltando.

E tanto faz em quantas vezes eu pense naquele dia, é sempre a sensação do abraço do Nicolas que permanece em mim. Naquele abraço em que não soltamos na tal noite. Aquele abraço em que o fiz dormir na sala da minha casa enquanto passava os dedos em seus cabelos lisos e a última coisa que vi foi a marca da sua última lágrima do dia manchar minha calça.

Eu nunca vou entender sua decisão de ir embora da vida.

Círculo de Cores pt VIII, 3

E aconteceu.

Pedi ao Nick para comprar uma pipoca doce para mim. Ele reclamou um pouco, mas pegou o dinheiro e foi até o carrinho do pipoqueiro a poucos metros de distância.

Milena olhava para frente sem parecer ver nada. Nunca vi olhar mais vazio. Pensei que a única vez que vi olhar assim foi naquele dia na rua dela, quando ela desligou o abajur para que Nicolas não a visse. Por um segundo, isso me preocupou demais. Achei que no tempo que passamos separados foi muito mais do que alguns meses, algo que eu nunca entenderia se não vivesse. Primeira volta.
Nick voltou comendo minha pipoca, ao que respondi pegando um punhado e jogando nele enquanto ele ria com a boca vermelha. Comi melecando os dedos e cuspindo discretamente os milhos que não estouraram. Mi parecia querer se trazer de volta à Terra ou pelo menos aos pensamentos que queria ter. Jogou os cabelos para fora do assento e olhava para cima, para o céu, onde intercalou em momentos de expressão vazia e aquele sorriso que vinha acompanhado de olhos fechados e um suspiro quase riso. Segunda volta.

Nick enchia as mãos de pipoca, me deixando quase sem nada. O xinguei e mandei que fosse comprar outro saco antes que o meu terminasse e eu continuasse com vontade. Ele me deixou novamente ali, apenas a contemplar aquele círculo de cores onde Milena estava agora olhando para baixo. Tão lindo, enchia os olhos, rodava tão devagar, como num filme com película cor de vida, algo rosa pastel, algo branco... uma roda gigante em lomografia. Terceira volta.
Anestesiei, sai de mim, deixei de existir por segundos.

Milena rodou e, na parte mais baixa do brinquedo, levantou a barra de segurança. Quando completava 360º de um círculo trigonométrico, ficou de pé. Pensei que fosse um anjo, algo lindo demais para ser real. Ela era a protagonista do filme que eu sabia o que aconteceria, mas esperava por um fato diferente mesmo assim.
Aos 60º desse círculo, ela abriu os braços, fechou os olhos e deu um quase sorriso. Talvez ela achasse que fosse voar. Porque por um momento eu também pensei. Para mim, ela seria como uma folha de papel, uma folha que fosse mudando de cor assim como a roda gigante mudava, e cairia leve, leve, até alcançar o chão e acordar desses sonhos que dão sustos em queda.

Queda. Por que não pensei?

Pensei ver seus lábios abertos, e sua língua movimentar-se para cima e para baixo, com um estalinho leve por trás dos dentes da frente: “la lalala lalala”.
Acho que ali, naqueles segundos que se estenderam em minutos longos, percebi algo que nunca tinha visto, não de verdade, não totalmente, não como era. Milena era uma mulher. Mulher demais para caber em nossas vidas. Pequenas, vazias, imaturas, de menino. Ela entendia a paciência, o amadurecer, o amor e também entendia a morte.

Quase que no mesmo instante, como em câmera lenta, Nicolas a viu também, ali, de alma e braços abertos, olhos e decisão fechados. Entendeu melhor do que eu, correu em direção de onde agora ela caia, não sem antes esbarrar forte em mim e derrubar-me toda pipoca no chão, correndo para onde ela caia com o tronco mais pesado que os membros e cabeça, com o cabelo esvoaçando para trás, deixando assento de brinquedo, deixando vento, deixando vida.

Quando entendi também, tudo era passado.
Milena caiu com um barulho forte no chão antes que Nicolas chegasse para fazer o que fosse.

Não vimos seu rosto, estava colado ao chão.
O papel caiu, mas não acordou ninguém de sonho algum.

O papel não tinha cor alguma. Na verdade tinha, mas demoramos a ver por causa das roupas escuras. Pois nos segundos que se seguiram, o papel criou uma poça de vermelho vivo em volta.
Nick apenas se jogou ao chão aos prantos e berros, as lágrimas caindo em quantidade surpreendente. Um círculo de curiosos se formou em volta da cena, e quem ousasse encostar em Nicolas levava socos e cotoveladas. Não percebi, mas eu também chorava.

Olhando para cima com a vista embaçada, vi a bolsa jeans pendurada.
Quarta e última volta.

Círculo de Cores pt VIII, 2

-O que vamos fazer agora, hein? –cortou Nick.

- Não sei, tem tanta coisa para ver hoje – respondi sem conter minha felicidade infantil de estar ali.
-O certo seria a gente ir à roda gigante, mas acho mais legal fazer algo entre nós três antes – Mi sugeriu, sabendo que naquele troço enorme que roda eu não iria mesmo, por mais bonito que estivesse. Num só som, Nick e eu exclamamos:

-CARRINHO DE BATE-BATE!
Mi simplesmente entrou no clima, compramos diversas fichas e competimos a fila com crianças e seus pais. Cada um ficou em um carrinho diferente e pelo que me lembre, o meu era amarelo. Batíamos uns nos outros como loucos e gargalhávamos escandalosamente, principalmente quando Nicolas tomava duas pancadas de uma só vez e saltava para cima, o que lembrava um frango em desespero (acho que foi assim que uma garotinha o descreveu depois que saímos cambaleantes da pista).

Depois fomos às xícaras gigantes que giram até a exaustão, mas nem teve tanta graça porque não era permitido entrar dois maiores de 13 anos juntos, então cada um de nós foi com uma criança que esperava na fila, para o alívio da labirintite de seus pais.
Mi implorou para que Nick lhe comprasse uma maçã do amor e no fim estavam os dois brigando por mordidas melecadas.

Então a tal roda gigante. Os corações batiam forte e os sorrisos brotaram no rosto de Mi e Nick quando eles se olharam. Fiquei apenas no meio sem ter o que fazer, afinal, apenas esperaria os dois. Remexia nos meus bolsos da calça enquanto os dois se continham em si mesmos, esperando sua vez de matar a saudade do brinquedo que marcou o que era ser criança.

Enfim, chegou a vez deles.
- Chegou a grande hora! –disse levantando as sobrancelhas e mostrando os dentes.

-Esperei tempo demais... – Mi olhou para mim com uma ternura que não entendo até hoje. Vi Nick entrando no brinquedo e olhando para nós, como se chamasse Mi com os olhos. E ela fez uma coisa que não esperei, novamente. Não vi como, apenas senti. Quando vi, ela estava nos meus braços, num abraço quente e acolhedor, sentia-a pequena, frágil, menina. Sua cabeça estava abaixo de mim, sob meu peito, e eu a abracei apoiando meu queixo no alto de sua cabeça loura escura.
-Du... Amo você, tá?

-Eu sei, Mi. Também a amo.
Ah! Se eu soubesse o que significava aquele abraço...

Nossos corações palpitaram por um segundo e lhe beijei na testa, quando Nick a gritou para se apressar. O funcionário colocou-lhes a barra de segurança e lá se foram eles, girando em sentido anti-horário. Afastei-me pra observá-los melhor. O que via, porém, não era nada do que eu esperava para os dois. Eles não riam como dois patetas, não apontavam para todas as direções, nem balançavam as pernas sobre o piso de base que se estendia um pouco à frente do acento. Eles conversavam olhando um para o outro. Na verdade eu via apenas o Nick, pois Mi estava de costas para mim. De repente, a boca de Nick parou de se movimentar e ele sorriu meio sem jeito, olhando para suas pernas. Então lá do alto, no ponto máximo da roda gigante, ele a olhou novamente, pôs a mão esquerda no pescoço de Mi, por baixo dos cabelos, fechou os olhos lentamente e... chão.

Olhei para o chão, pois aquilo era um monte de confusão, mas eu estava absurdamente feliz com aquilo, como se fosse a coisa mais certa e que mais fazia sentido no mundo. Mais para o lado direito agora, eles ainda se beijavam, e de repente coisinhas pequenininhas sobre Mi se encaixaram e um tiquinho da alma daquela menina fez sentido. Sabe-se lá por que ela não me disse nada, ou se disse com atos, como não percebi. Mas ali, no momento, era como se eu soubesse e só quisesse que aquela imagem fosse eterna.
Mais uma volta e, no mesmo lugar em que iniciaram o beijo, pararam. Vi Mi se virar de costas para Nick agora, morder o lábio e sorrir ao mesmo tempo, com a ponta de dois dedos sobre os lábios, com os olhos fechados, como se aquilo tivesse sido esperado por... “tempo demais”.  Então ela abaixou a cabeça, deixando o cabelo cair sob o rosto, e assim ficou enquanto Nicolas tinha um sorriso muito idiota na cara. Tudo isso num tempo devagar demais para ser de verdade. Eu assisti tudo o que se passou a partir dali como num filme, como se eu esperasse acontecer mesmo sem saber o que seria dos fatos.

E o brinquedo parou. Nick esperou o funcionário vir levantar a barra de segurança para eles saírem, mas Mi disse que queria ir novamente, percebi pois ela nem ao menos se levantou, entregando outra ficha ao funcionário, que lhe permitiu brincar novamente devido às poucas pessoas na fila. Eu continuava olhando um pouco afastado enquanto Nick vinha em minha direção com as mãos nos bolsos, ainda com aquele sorriso de canto. Quando ele ficou ao meu lado, apenas dei-lhe um soquinho no ombro sorrindo, ao que ele respondeu corando. Quando o funcionário terminou de abaixar todas as barras, ligou o brinquedo, ao que Mi nos olhou e acenou com a mão sorrindo.
Acenei de volta. Nick sorriu.

Círculo de Cores pt VIII, 1

E é esse dia que é o ponto de todos os pensamentos. Esse dia é uma grande incógnita na vida de todo mundo. Bem, todo mundo que conheço. Não sei nem descrevê-lo, para ser sincero.

Nossas férias já eram um acordar tarde demais, um comer demais, internet demais, até que a tal quarta-feira chegou. Acordei umas 15h, depois de horas e horas jogando com o Duka no computador. Foi o tempo de comer e ouvir pacientemente todas as reclamações de minha mãe sobre o que eu (não) fazia, tomar banho e me vestir e seguir para a casa de Mi, como o combinado.

Quando cheguei, ela nos esperava de pé na calçada brincando de soltar fumaça com a boca, que era possível por causa do frio.  Ela vestia luvas e estava com a bolsa jeans cheia de penduricalhos que tanto gosto. Havia pintado os olhos.
-No frio não derrete a maquiagem – ela disse ao perceber que eu olhava para seus olhos carregados de sombra preta. Eu não sei por que, mas fiquei sem jeito. Eu vivia ficando sem graça com essas coisas relacionadas ao corpo dela. Talvez seja por causa do meu pouco contato com o corpo feminino.

Depois de dez minutos esperando, Nick apareceu ao fim da rua. Usava um gorro cinza e também vinha soprando o ar para ver a fumaça de ar frio subir.
Resolvemos não tomar o ônibus para ir ao parque. Por conta do frio, fomos a pé a fim de nos aquecer e novamente Mi estava no meio, com os braços em volta do meu pescoço e de Nick, com a gente com os braços em volta de sua cintura (espantoso como aquilo era tão espontâneo para Nick). E assim chegamos ao tão sonhado parque, que estava bem diferente do que costumávamos ver quando crianças, mas sem deixar de ter aquela magia toda. Como fomos a pé, já havia escurecido quando chegamos.

Corremos os olhos por todo o espaço, com vontade de poder abraçar toda a imagem com a visão. Tinha cores neon, que cintilavam, que piscavam, que fosforesciam, que brilhavam, que...
Ao fundo, risadas, gritinhos de felicidade e aquela mesma música infantil que tocava no carrossel quando éramos meros garotos sem nem ao menos pelos no corpo. Cheiro de pipoca, de maçã do amor, de doces, de perfume, de...

Pensei ter visto aquilo como uma fotografia, onde vi até bolhas de sabão, cuja luz me fazia ter a impressão de que bolinhas coloridas eram postas naquele céu escuro. Era como entrar na minha própria cabeça e ver tudo de bom que eu podia pensar.

Era tão lindo que às vezes penso que aquele dia foi um sonho. E isso é horrível, pois depois dali, nunca mais soube o que era sonho, realidade ou imaginação.
Naquele momento de encanto, percebi que meus amigos também haviam visto a mesma coisa que eu. Suas expressões denunciavam a mesmíssima impressão que tive. Mas na roda gigante. Sua amada roda gigante. Tão deles...

Devo reconhecer que o objeto estava particularmente bonito e conforme girava, suas várias cores se tornavam diferentes, alguns pontos brilhavam, piscavam e alguns riscos em verde e vermelho neon davam aos acentos do brinquedo uma magia abstrata. Até eu tive vontade de rodar eternamente ali.
-Hei Mi, o que isso te lembra? – disse quase num grito quando corri para frente dela, posicionando-me em frente à roda girante e abrindo os braços, imitando Kevin Martin no clipe da música que ela havia cantado em sua casa, no dia da festa de Achila. Até olhei para ver em que sentido o brinquedo rodava, e era exatamente igual ao vídeo, para minha satisfação. Ela riu alto quando começamos a cantar juntos.

You…
It's for you
Only you
It's for you

domingo, 6 de maio de 2012

Círculo de Cores pt VII

A partir daqui, tudo foi muito rápido.

Não parei de pensar naquela noite no quarto da Mi, era o tipo de lembrança que a gente quer ter para sempre, daquelas que conforme os dias passam, a gente não quer que as sensações de ter vivido aquilo vão embora.

A última semana antes das férias passou preguiçosa, e logo na sexta feira, quando o início de nossas férias se tornou uma grande comemoração, Mi apareceu com os cabelos presos e camiseta naquele frio do inverno que já tinha chegado, e eu já sabia: hora da faxina. Trouxera com ela algumas caixas, que justificou como sendo para ajudar minha bagunça a ficar dentro delas.
Era tudo como costumava ser: limpávamos, tirávamos do lugar, víamos como ficava em outro. Colocou algumas coisas que eu não costumava usar dentro das caixas e as pôs em cima do guarda roupa. Só sobrou uma caixa menor, que tinha ficado vazia, que ela deixou junto com as outras para empoeirar no alto.

E assim passamos algumas horas que pareciam minutos, pois os diálogos tornavam tudo mais colorido.
Até que o dia virou algo bonito demais para caber na arte de contar.

Nick bateu na porta. Antes que mandasse entrar, antes que ele dissesse qualquer coisa, Milena e eu já sabíamos que era ele. Não Nicolas, mas o Nick.
Ele não esperou resposta: abriu a porta e entrou. Tinha o violão que ganhou do avô pendurado nas costas, e usava casaco grosso marrom e o cachecol vermelho que Mi havia lhe comprado quando fomos à São Paulo com os pais dela. Ele pareceu surpreso e contente de ver Milena, que estava sentada no chão, arrumando minha gaveta de cuecas, para minha infelicidade.

Ela sorriu o sorriso mais lindo do mundo. Simples desse jeito. Não sei se foi por causa do cachecol, do violão ou pelo Nick mesmo.

-A gente não foi na festa, foi mal, estávamos sem clima... – fui logo tentando explicar, mesmo que já tenha passado semanas.
-Desencana, acho que foi até melhor.

-Nossa, obrigado.
-Não é por nada não, mano. É só que... – Nick tirou as luvas e mostrou as mãos. Sem aliança.

Mi fechou a gaveta e foi sentar na cama, frente a um Nick solteiro, também chocada. Eu estava no chão, organizando meus DVDs por ordem alfabética como Mi havia mandado, mas parei tudo para olhar para ele.
-Fiz a droga de homenagem e não deu três dias peguei a vadia aos beijos com o Fael, o moleque do segundo ano. Tão patético que nem consegui chorar.

Mi levou as mãos até a boca, num espanto de olhos arregalados. E eu sabia que ele já tinha chorado tudo que tinha que chorar.
Não dissemos nada, mas queríamos muita coisa impossível. Como restaurar totalmente o coração daquele menino que parecia tão frágil ali, naquele bolo de roupas, mordendo o lábio inferior numa contração de todas as dores que nunca mais sairiam dele, que apenas sairiam de foco do seu coração com o tempo.

 Ele se apressou em quebrar o silêncio.
-Sabiam que o parque abriu ontem? Nem prestei atenção no negócio sendo construído, só vi quando já tava todo lá.

-NÃO ACREDITO! –Mi saltou como num desenho animado.
-Sim, eu vim pra pedir o CD do Sex Pistols pro Du e ia contar sobre o parque, ele provavelmente te ligaria na hora.

-AAAH, quando nós vamos, hein? – Intrometi.
- Olha, essa semana vai estar cheio... Acho maneiro ir na próxima, e numa quarta-feira, tem menos gente ainda.

-Certo, quarta que vem, 17h lá em casa, todos prontos para viver a infância de novo! – Mi combinou.
Ficamos todos com um sorriso bobinho depois disso, até que Nick tirou o violão da capinha e dedilhou algumas músicas de letra triste.

-Sem pensar na Britney Spears agora, Nick!

-É Hillary Duff, Eduardo! –disseram os dois juntos, como uma só voz, como se tivessem ensaiado. E as três risadas que seguiram também foram.
O silêncio nada constrangedor ficou ali de novo, até que Nick tocou uma melodia e Mi sorriu. E fez algo que nunca tinha visto antes: ela cantou. Uma voz fina e assustadoramente afinada. E aquela imagem de Nick tocando o violão como se pudesse tocar a alma, com os olhos fechados, só sentindo a voz de Milena, que cantava com o olhar terno para ele... é a lembrança mais bonita que tenho.

sábado, 5 de maio de 2012

Círculo de Cores pt VI

Duas semanas correram e pronto, era sábado. No dia anterior mandei uma mensagem pra Milena dizendo que eu passaria por lá as oito, pra nós irmos juntos à festa no centro da cidade.
Minha mãe ficava me fazendo elogios sobre a roupa, me entupindo de perfume, arrumando meu cabelo (que finalmente já tinha cortado) e tirando fotografias aos montes. Disse que queria várias fotos minhas com a Mi, pois ela certamente estaria linda num vestido e mais um monte de besteira. Ela e a mania de elogiar a Milena. Acho que ela queria uma menina quando engravidou.

Minha mãe me deixou na casa da Mi e esperava para que ela descesse e entrasse no carro para poder paparicá-la. Seria o inferno. Fazia tempo que elas não se viam. Fazia tempo que eunão a via.

Quando toquei a campainha, a irmã dela que mora do Rio de Janeiro veio abrir o portão e disse pra eu entrar. Minha mãe, muito paciente e sorridente, assentiu com a cabeça.

-Que diabos você veio fazer aqui, Mirela? – perguntei rindo à irmã de Milena. Ela estava muito diferente da última vez que a vi. Mais morena na pele e nos cabelos, com o corpo mais bonito de olhar.

-Pois é, aproveitei as férias do trampo pra ver a irmãzinha, nossos pais pediram pra eu tentar falar com ela. Olha Du, não acho que ela vai à festa. Você está muito bonito, afinal.

Não respondi, apenas senti meu rosto queimar e abaixei a cabeça. Acho que nunca ouvi isso de alguém que não fosse da minha família.

Ela me conduziu para dentro da casa, onde deu permissão para que eu seguisse para o quarto da caçula.

A porta estava fechada e ouvi uma música do álbum que ela havia copiado para mim há um tempo que me pareceu uma eternidade. Candlebox.

Bati uma vez. Nada. Bati mais forte. O rosto de Milena apareceu na porta que ela entreabriu. Não sabia o que dizer e achei por um instante que ela não tinha movido um dedo para se arrumar para a festa.

Não tinha mesmo. Abriu a porta de um jeito suficiente para que eu entrasse, e fez um movimento com a mão permitindo minha invasão.

Fiquei absolutamente sem jeito, mas entrei. Ela estava com uma calça moletom preta e camiseta larga do Pearl Jam. Estava bem mais magra e o cabelo pareceu estar mais comprido e menos armado. Abaixou um pouco a música, que se repetiu mais umas duas vezes.

- Como você percebeu, eu não vou.

- Por que não me avisou?

-Só queria te ver e assegurar que seria vista.

Ai.

Ela parecia ser a mesma Milena. Seu jeito era o mesmo. Cantava a música balançando a cabeça de leve, sentada na cadeira com as pernas abertas e as mãos apoiadas no largo vão entre elas. Senti ali como se aqueles três meses não tivessem existido e me sentei em sua cama, olhando pra ela.

- Não sei por que pensei que você iria. Nunca se deu bem com a Achila, nunca se deu bem com festas...

Ela deu uma risada alta jogando o pescoço pra trás, concordando comigo.

- Pensei que você também não fosse, Eduardo.

- Não sei por que estou indo... – não tinha pensado nisso, mas é verdade. Não tinha motivo. – Acho que é por causa do mico do Nicolas. Ele vai homenagear a Paris Hilton.

-Mais um motivo pra eu não ir. – debochou Milena – E ela é a Hillary Duff, Du! – Du. Arrepiei de leve quando ela me chamou assim. Parecia mesmo que o tempo não tinha passado.

- Verdade, você a chama de Hillary Duff.

Desci para avisar minha mãe que ela podia ir embora. Menti que a Mi estava se arrumando ainda e que o pai do Nick nos levaria mais tarde. Ela relutou, mas concordou em ir embora sem ver Milena.

Naquele dia não fomos à festa, ficamos apenas conversando e rindo como se os três meses tivessem sido três dias. Até brincamos de guerra de travesseiro e comentei que meu quarto já estava muito pior do que nos outros anos. Com o Duka realmente mudei, nem tentei manter a organização de Mi até o meio do ano. Não tinha ninguém para pegar no meu pé. Ela prometeu ir durante as férias que se aproximavam para “por ordem no galinheiro”.

Era quase meia noite quando a irmã de Milena a disse que estava na hora. Mi me pediu licença e voltou poucos minutos depois, ofegante por causa da escada.

- Esses remédios são um saco, cada hora é uma merda: sono demais, sono de menos, tira fome, me dopa... – disse mais para si mesma.

Achei melhor não perguntar. Senti que ela não responderia também.

Minha mãe me ligou e percebi que não tinha mentira para contar porque não estava na festa naquele momento. E se ela tivesse ido me buscar?

-Ô Mi, vou indo. Acho melhor eu dizer que peguei carona com alguém, porque se minha mãe inventar de me buscar, já era.

-Tudo bem, então, Du. E... Obrigada. – e sorriu aquele sorriso meigo constrangido que ela só sorria para mim, e que percebi que senti muita falta de ver.

Antes de sair, Mi cantou a música que tocava quando cheguei, e fiquei com ela na cabeça até o dia seguinte. Olhei em volta do quarto dela antes que Mi apagasse a luz para descer e me acompanhar até o portão para se despedir e percebi que na prateleira onde ela deixava os vestígios de sua infância só havia sobrado uma única boneca, uma Barbie em vestido rosa brilhante.

Percebi pela primeira vez algo muito grande e inexplicável ao olhar para Mi antes de ir embora naquele dia. Enquanto garotos são só garotos, garotas são mulheres.

Círculo de Cores pt V

E esses três meses foram o sopro de tempo que nem vi.

Num dia que já havia se tornado comum, eu estava jogando videogame com o Duka, quando minha mãe apareceu na porta do quarto e disse que o Nick estava no portão. Ela tinha dito que o Duka estava lá, então ele não quis entrar; mas isso nós percebemos no silêncio. Então o Duka se levantou e foi vestindo a blusa de frio que estava amarrada em sua cintura há segundos.

-Ahm, mande-o entrar, Du. Eu já ‘tava indo mesmo, então... – Não estava. Mas achei que se o Nicolas tinha aparecido, é porque tinha algo importante pra dizer. Duka ajeitou os óculos que entortaram em seu rosto quando ele vestiu a blusa parda.

- Mãe, diz pro Nick... digo, Nicolas subir, então.

Ela só olhou um olhar meio desconfiado e saiu do quarto com ar de relutância. Duka se despediu um pouco desanimado. Imaginei Duka e Nicolas se encontrando e se cumprimentando brevemente no quintal enquanto enrolava os controles nos fios do videogame.

-Opa! – o rosto perfeito de Nicolas surgiu na minha porta, com certo receio, pedindo pra entrar.

- Entra ai, Nicolau. – arrisquei.

- Ah, cala a boca.

Ele tinha alguns papéis enfeitados nas mãos.

- Olha, não vou tomar muito tempo de você não. É só pra convidar pra festa da Achila. Sabe como é, 15 anos e tal, ela quer que meus amigos vão, é uma desculpa pra ela se aproximar de vocês... Só deixei o Duka ir embora porque ela não gosta muito dele e não o convidou, ficaria chato.

-Entendo. Mas Nicolas, – soava estranho chamá-lo de Nick agora – você não acha muito estranho isso? Não sei, não sei nada sobre sua namorada e não sei o que dar de presente nem nada...

-Leva maquiagem de marca, pede umas dicas pra Mi, não sei. Ah, e se puder, entrega o convite dela também. – e me esticou dois envelopes, com os nomes Eduardo Martins e Milena Linzzaro com letras bem desenhadas.

-Não sei como vou fazer isso, Nicolas. Sabe, assim como você, não tenho contato com ela agora.

-Mas sua situação não é pior que a minha, cara. – Aquela briga. É mesmo. – Vou fazer uma homenagem-declaração pra Achila. Dessas que todo mundo na cidade vai zoar...

-Pois é, milagres acontecem, né? Nicolas Ferraz se apaixonou mesmo, afinal.
Nicolas deu uns murrinhos com a parte de trás da mão na parede, desencostou o corpo dali e anunciou que estava indo embora, pedindo pra que eu realmente fosse à festa.

-Acho que vou sim... Vai ser no fim de semana seguinte ao término das provas, e logo estaremos de férias... Ótima época para dar uma festa, a Paris Hilton é esperta.

-Não a chame de Paris Hilton, Du. Nada a ver... – ficou quieto por um ou dois minutos. – Vou lá, Du. Vê se vai mesmo, hein? É muito importante pra Achila. – E foi embora, mas não sem antes se esbaldar com o Regime.

 Como eu entregaria aquilo, eu não sei. Acabou que deixei na caixa do correio dela naquele mesmo dia, algumas horas mais tarde. Eu simplesmente não sei o que diria pra ela. Mas eu queria que ela fosse comigo. Pra dançar a valsa, falar comigo durante a noite, essas coisas, já que Duka não estaria lá. Achei idiota só pensar nela quando precisei. Mas era bem isso que aconteceu naquele momento plantado na porta da casa dela, hesitando entre deixar o convite na caixa ou tocar a campainha. Num só movimento, larguei o convite na caixa bege e me virei para ir embora.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Círculo de Cores IV, 2

Foi um tapa na cara, um soco no queixo, um chute na boca do estômago. Não sei como e nem porque, mas a gente sabia. A gente sabia direitinho o que estava acontecendo.

Com o namoro do Nick, ele passou a viver pela Achila. Na escola, eles faziam tudo juntos. Nem os trabalhos eu fazia por ele mais. Aquele ritual de anos e anos se quebrou, mas não precisei avisar que não garantiria a nota dele naquele bimestre. Ele já sabia.
Resolvi seguir, então. Duka, o garoto novo, passou a preencher minhas manhãs. Nunca falávamos sobre Milena nem Nicolas, era como se eu também fosse novo por ali. Só existíamos nós. Era muito diferente ter um amigo novo, pois tudo um no outro tinha aquele sabor de descoberta e isso me fascinava a cada dia em que Duka fazia parte da minha rotina, e ele ter um número absurdo de coisas em comum comigo só fez tudo ser melhor. E isso me bloqueou pensamentos sobre Milena e Nicolas.

Ele eu sabia que tinha à Achila (que por sinal não suportava Duka). Mas jamais prestei atenção ao que acontecia com Milena.
Não sei quem lhe fazia companhia, não sei com quem conversava ou se sequer continuava a mesma Mi, e nem percebi se ela tentou falar comigo. Creio que cheguei a passar semanas sem olhar para ela ou lembrar que ela existia. Sei que não a via em lugar algum.

E assim foram os meses. Três deles.

Círculo de Cores pt IV

E então, tudo foi um borrão. Nós nos víamos tão pouco que as minhas lembranças de Nicolas e Milena também são fragmentos até determinado ponto. Mi me contou brevemente que depois que Nick acordou no dia seguinte, ligou pra mãe, contou tudo e escutou silenciosamente a resposta que durou minutos.

Milena e Nicolas discutiram feio. E é o que sei. Não sei motivo nem nada, o Nick não quis falar sobre isso também. Então parei de perguntar.

A distância foi glacial. Mas foi natural, ouso dizer. Porque mesmo depois da discussão, Mi e Nick se falaram um pouco, educadamente até. Sabe, sem ironias, sem aquele clima chato?

Mas os três sabiam que era diferente agora. E ninguém queria falar sobre isso.

Em março, no aniversário da Mi, mesmo que ela não tenha dito nada sobre uma comemoração simples ou algo do tipo, combinei com o Nick de passarmos lá. No caminho, ele disse que logo teria que ir embora. Encontro com a Achila.
Mas dessa vez era especial. Ele a pediria em namoro de vez.

Lembro que discutimos sobre aquele dia do porre, mas o cara estava mesmo apaixonado. Eu não sabia nem que eles continuaram a ficar, para que se tenha uma ideia do silêncio que pairou sob nós. Perguntei se precisava mesmo pedi-la em namoro justo naquele dia. Senti mesmo que era um tremendo desrespeito com a Milena, mas resolvi calar lançando um olhar sob o seu olho que tinha sido golpeado no carnaval, agora já curado.

Na realidade, nem eu quis ficar muito na casa dela aquele dia. O clima estava muito estranho, então usei a saída do Nick para ir embora também. Mi não parecia querer receber pessoas em casa, mas alguns parentes estavam por lá. Eu queria muito saber o que estava acontecendo com ela, com ela e o Nick, com nós três; mas achei melhor optar pelo silêncio, porque parecia ser o que a gente precisava. Tempo e espaço.

Quando Nick e eu deixamos a casa de Mi, já escurecia. Nick não tirava a mão do bolso, onde imaginei que estaria a caixa contendo as alianças (suspeita que não demorou a se confirmar pelas mãos do casal). Descíamos a rua lado a lado, em silêncio. O outono já começara e uma garoa muito fina tocou meu pescoço. Resolvi olhar para a casa de Mi, onde a vi na janela de seu quarto com uma luz contornando perfeitamente seu rosto, vinda de baixo, reforçando aquele olhar que achei ser o mais triste que já vi. No momento em que Nick se virou e certamente a veria também, Milena desligou o abajur.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Círculo de Cores pt III

Para a cidade, o carnaval foi um estouro. Para nós três foi um fiasco.

Eram umas duas da madrugada. Eu ainda fazia um trabalho da escola, de História, acho. Estava sem sono, e o som do axé rolando solto ao longe latejava na minha cabeça. Estava pronto para fazer o trabalho novamente em outras palavras como costumava fazer em favor ao Nick. No começo isso me irritava bastante, mas não me pergunte por que continuei a fazer os trabalhos por ele a ponto de não me importar mais.
Pensava que naquele exato momento ele estava dançando vergonhosamente com a sua Paris Hilton na avenida com a camiseta do bloco e que Mi estaria dormindo com os fones de ouvido ouvindo algo como The Cure, mesmo que apenas em subconsciente. Eu estava muito enganado. Logo eu descobriria.

Levantei para esticar o corpo. Passei realmente muitas horas sentado ali. Passando os dedos pelos cabelos, pensei que já estava na hora de cortar. Minha juba devia mesmo estar muito engraçada naquele momento. Acontece que meu cabelo é enrolado e cresce para cima e para os lados, e quando estou concentrado em alguma coisa mexo nele sem parar, enrolando os dedos nos cachos grandes e puxando depois. Milena também adorava brincar com meu cabelo, e uma das fotos que tenho dela no mural de feltro em cima da escrivaninha é uma em que estou sentado no chão, ela na cadeira da escola puxando um longo pedaço do meu cabelo e fingindo ser um bigode em seu rosto.  
Segui para o banheiro e tirei o aparelho da boca antes mesmo de acender a luz. Lavei o objeto de ferro passando a língua nos dentes, guardei-o na caixinha verde-limão e escovei os dentes ainda sensíveis pela força exercida entre eles. Eu estava muito estranho. Parecia cansado.
Quando voltei ao quarto, havia uma mensagem no celular. “Mi”.

Aquilo me preocupou. “Venha para cá agora.”
Quando ia responder perguntando o motivo, ela me mandou:

“O Nick tá aqui, fez merda. Tá muito bêbado e machucado. Vem logo.”
Vesti uma roupa qualquer e nem passei desodorante. Percebi que estava tremendo. Nicolas Ferraz. Machucado. Sai de casa sem tênis e na ponta dos pés. Não podia ser pego de jeito nenhum, mas não podia ficar. Calcei o tênis de qualquer jeito me apoiando no portão de casa e não pude deixar de imaginar quantas vezes vi o Nick me esperando ali.

Passei as ruas quase correndo, evitando passar por qualquer conglomerado de gente em festa, evitando as avenidas, mas sem evitar casais bêbados aos beijos, amigos em roda de maconha ou um ou outro vomitando nos bueiros. Respirava tão forte que por baixo da minha costela direita começava a doer aquelas dores agulhadas, que dói só de respirar. Mas não parei.

Quando cheguei à casa da Milena, mandei-lhe uma mensagem avisando que estava lá. Sabe-se lá sobre os pais dela. Vai que não sabiam sobre o Nick? Logo ela desceu com um short creme, chinelo e uma regata preta, sem sutiã. Reprimi-me por reparar nisso. As luzes estavam acesas e ela disse em alto e bom tom:
- Pensei que não viria, que não tinha lido a mensagem porque estava dormindo ou algo assim. Já ia te ligar.

Mi estava com parte do corpo molhado. Me mandou trancar a porta e seguiu para o banheiro.
- Mi, e teus pais?

- Esqueceu que todo carnaval eles vão para a casa da minha irmã ver o desfile das escolas no Rio?
-Putz, é mesmo...

No banheiro, Nicolas jazia nu no chão, molhado, com a cara horrível. Tinha um olho inchado, o nariz e o lábio superior sangravam. Ele estava chorando e dizendo coisas estranhas à Mi.
-Pelo amor de deus, Nicolas João Ferraz, por que diabos você saiu do chuveiro?

O chuveiro estava ligado. Nick resmungava coisas que apenas Mi parecia entender, até que ela o arrastou até o vaso sanitário, onde ele se agarrou e vomitou horrores.
-Mi...

-Não diz nada, Du... – ela parecia profundamente magoada com aquilo. – Essa menina só faz mal pra ele. Olha isso... – ela dizia com a mão nas costas do Nick - Quanta miséria. Ela o fez beber mais do que ele aguenta. E esse imbecil ainda arruma briga com moleque que vem pra cidade em grupinhos. Quero ver pra explicar isso pra mãe dele amanhã...
- E a Achila, cadê?

-Largou ele aqui e foi embora.

Ficamos um tempo olhando Nick com a cabeça apoiada nas beiradas do vaso. Mi o sentou com as costas apoiadas na parede, pegou alguns algodões e tentava conter os sangramentos. Então ela começou a chorar.
-Mi, vai separar uns remédios e alguma coisa levinha pra ele comer, deixa que eu cuido dele, aproveito e dou um banho nesse mané.

Ela levantou ainda chorando, se apoiando na parede acima das costas do Nick. Deu espaço para que eu levantasse o garoto e virou as costas, mas não saiu sem antes se virar e dar o maior tapa que já vi na vida. Pegou o rosto de Nick em cheio, e o barulho foi maior contando que ele estava molhando. Algumas gotas do sangue que escorria do nariz dele respingaram no chão. Nick apenas arregalou os olhos. Eu exclamei o nome dela num susto, e ela o olhava com raiva. Empurrei-a de leve com quatro dedos, indicando para ela sair, enquanto apoiava todo o peso do Nicolas do lado direito do corpo.
Ela saiu do banheiro ainda chorando e eu banhei o corpo do meu melhor amigo em água fria, o vesti com uma roupa que Mi trouxe, provavelmente do pai dela, e passei remédio nos cortes. Ainda no banheiro Nick finalmente adormeceu enquanto eu lhe secava os pés. No colo, levei-o para o quarto de Mi, onde ela estava sentada na cadeira da escrivaninha, com o nariz vermelho. Ela já tinha arrumado a cama para ele, onde o deitei e cobri.

- Esquentei umas gororobas na cozinha, mas ele nem vai acordar antes que o sol esteja alto.
Apenas sorri triste para ela. Era deprimente aquela situação. Mesmo. Sentei ao lado da cama dela, com a cabeça perto da do Nick, escutando sua respiração pesada.

-Que vexame, hein, amigão...? A Mi te vendo pelado...  – murmurei e ri baixinho com ela, que veio vindo para perto de mim, onde se aninhou no meu ombro úmido e agradeceu baixinho. Passei a mão num gesto acolhedor em braço nu e senti quando ela adormeceu.
Desencostei devagar dela, e coloquei um de seus ursos polares de pelúcia sob sua cabeça. Olhei em volta de seu quarto, olhando seus livros, pôsteres de ídolos, a bolsa jeans aberta. A última coisa que olhei foi a estante da parede onde ela enfileirava algumas bonecas, denunciando sua meiguice e infância.

Como num filme, lancei um olhar cansado para meus melhores amigos que dormiam, imaginei como eu deveria estar com a aparência horrível, apaguei a luz, fechei a porta, sequei o banheiro e fui embora sem fazer barulho algum.

Círculo de Cores pt II

Foi a partir da segunda semana de fevereiro que as coisas começaram a ficar estranhas.

Nossas aulas começaram e tudo parecia mais difícil considerando o fato de que poucos de nós tiveram sequer contato com a própria escrita durante as férias. As datas dos trabalhos logo se acumularam na lousa, tudo absurdamente rápido, etiquetando nossa preguiça com seus prazos. Nada tinha mudado apenas o fato de duas pessoas novas no colégio: um garoto magrelo com jeito de espertalhão do tipo que consegue hackear qualquer sistema, que preferia ser chamado de Duka e uma menina sem graça que nunca soube o nome, que escondia o rosto sob os cabelos.

Ninguém dava muita importância para a escola ainda. O carnaval na cidade prometia ser dos bons, pois o último tinha fervido horrores e os turistas certamente voltariam com mais gente. Eu mesmo acabei me entregando à festa da carne a vagar no outro ano, quando fiquei bêbado com o Nick pela primeira vez, e foi quando ele admitiu de vez para si mesmo que carregava o inferno nas costas pelo amor de Achila.
Com a festa toda montada na cidade e os hotéis juntando turistas, voltávamos eu, Nick e Milena da escola, sem o peso de ir para a escola durante toda a semana. Milena organizava consigo mesma qual dos trabalhos faria no feriado, enquanto eu e Nick, como perfeitos idiotas, brincávamos de trocar socos e pontapés na rua, xingando um ao outro e achando tudo muito engraçado.

- Parem de ser bobos, vocês são crianças demais um com o outro e comigo, não dá pra entender.

- Ah Mi, é divertido, você sabe que sempre foi nossa forma de demonstrar amizade – respondeu Nick dando um peteleco na orelha de Mi com os dedos.
- Na frente das outras garotas vocês são perfeitos gentlemen, pensam que não vejo?

- Poxa, é diferente né Mi... É que sei lá... Você é você, entendeu? Você não é uma garota. Quer dizer, é, mas... Não sei, você é a Milena, entendeu?

É. Ela era uma irmã, não dava para nos ver romanticamente com ela, era o tipo de ideia impossível. Depois disso todos continuaram a andar em silêncio, Mi olhando para o chão, Nick chutando uma pedrinha e eu procurando o que dizer.
- O prefeito disse que o dinheiro arrecadado com o carnaval esse ano vai ser investido em obras para a cidade, e como provavelmente vai lotar de gente, talvez sobre dinheiro para a reconstrução do parque. Vocês viram?

Acho que foi a melhor coisa que Milena e Nicolas ouviram na semana. O parque de diversões foi desativado há três anos, quando os funcionários fizeram greve e ninguém se importou. No fim das contas, parou-se de investir nas máquinas e sua manutenção, e o espaço foi ficando abandonado, sendo ponto de encontro para drogados ou casais safados. Nick e Mi amavam a roda gigante, sempre que entravam rodavam inúmeras vezes. Eu tenho medo de altura desde sempre, então acabava indo ao carrossel enquanto os dois paspalhões riam escandalosamente nas alturas. Ambos agora torciam de dedos cruzados para que os turistas viessem aos montes enquanto riam e diziam que juntos estreariam a nova roda gigante.
O sol já causava ardor em nossas peles e a fome agredia os estômagos. Milena seguiu o caminho de sua casa, e Nick me acompanhou até a minha. Ele só faz isso quando quer conversar sobre algo importante, mas dessa vez ele não disse nada. Fiquei esperando e até fiz certa pressão, mas ele só disse que queria passar um tempo a mais do meu lado. Como se na época ele soubesse que estávamos a um passo de bocas cheias de nada para dizer.

- Vai à festa esse ano, Du? No carnaval...
- Nem sei, minha mãe ficou muito fula quando descobriu que bebemos, dessa vez ela vai ficar em cima. E também tenho que adiantar os trabalhos...

- Sei... Vou com a Achila. Ela participa de um bloco, acho que vai ser maneiro.
- Toma cuidado, mano... Sei lá, leva umas camisinhas, não sei...

- Sei lá, não está assim também, e vai ter um monte de gente loucona, também vou beber pra caramba, mas não acho que...

-Sei. Sabe se a Mi vai?
- Sei não... Então... Vou nessa. Depois te pago o trabalho que pedi pra você fazer pra mim, tá?

- Você nunca pagou os outros que te fiz, Nicolas.

- Eu sei.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Círculo de Cores pt I

A história que vou contar começou há um ano, mas a repasso na cabeça todos os dias e, mesmo quando não repasso, ela vem até mim sem que eu queira. Não é uma completa tortura, de jeito nenhum. A maioria das lembranças são muito boas.

Milena se mudou para Uberlândia aos sete anos. Eu e Nicolas, o Nick, nascemos aqui e crescemos juntos. Também tínhamos sete; hoje, somamos entre 14 e 15.

Na última semana de janeiro estávamos desesperados para fazer alguma coisa. Logo as aulas recomeçariam e precisávamos dar aquele toque de diversão aos nossos dias ociosos que só a falta de lição de casa pode oferecer.
Combinamos de passar o dia penteando macaco na minha casa, já que o dia escaldante espantava qualquer um do menor sinal de sol. Não demorou muito estavam Nick e Milena, com as testas brilhantes de suor gritando meu nome no portão de casa.

Nicolas tinha passado a se arrumar mais por causa de Achila, a garota mais desejada do colégio, mas hoje estava com aquela bermuda velha e chinelos horríveis e com a camiseta branca na cabeça fazendo uma espécie de cabana para proteger o rosto do sol. Ele era o típico “sonho de consumo” das garotas da nossa idade – cabelos escorridos jogados no rosto, há uns dois anos passou a malhar e sorria de canto só para provocar as meninas da quinta série. Enquanto isso eu lutava para deixar os dentes da frente juntos com aquele aparelho infernal.
Milena demorou um pouco a ter as curvas das garotas da sua idade. Seus seios se salientaram apenas de um ano para cá, mas já eram notáveis e suficientes para caber dentro de um sutiã. Seus cabelos eram um castanho quase louro, lisos, mas sempre despenteados. Tinha o costume de se vestir de preto e naquele dia, mesmo que o sol estivesse rachando nossos crânios, não foi diferente. Vestia saia de pregas, camiseta do Nirvana e seu inseparável All Star.
- Ô Du, pelo amor de Deus, abre o portão, mané! – Nick gritava enquanto eu procurava as chaves que o Regime, meu cachorro, adorava esconder. Dessa vez tinha sido atrás das almofadas do sofá.
Quando abri, Nick foi direto brincar com o cachorro preto magricela, que pulava desesperadamente em suas pernas. Milena procurou alguma coisa em sua bolsa estilo carteiro jeans cheia de bottons de bandas, que eu achava o máximo. Ela tinha aquela bolsa desde que a conhecemos, era parte dela. Apenas vimos o número de acessórios aumentarem. Ela puxou um CD numa capa de papel amarelo e me entregou. Estava escrito “Candlebox - 1993”.
- Ah, Mi! Não creio que você achou esse CD! Não consegui baixar de lugar nenhum!
- Você que não sabe procurar, Eduardo.

Agradeci, mas ela já tinha limpado os pés no capacho e entrado em casa para falar com minha mãe, como de costume.

Depois que meus amigos pararam de suar e tomaram água, Nick vestiu sua camiseta e Regime parou de abanar o rabo, subimos as escadas em direção ao meu quarto. Sempre que beirava o Natal, Milena vestia uma roupa confortável, prendia o farto cabelo e arrumava meu espaço, dizendo o quanto eu era desorganizado e essas coisas. Mas eu sei o quanto ela se divertia fazendo isso, pois sempre escutávamos alguns CDs que juntavam poeira em cima do armário e ela me mandava separar papéis para jogar fora, que juntavam sempre alguns sacos de lixo, não sem antes ela ler e rir das minhas poesias ruins ou respostas burras nas provas do colégio. Ela dizia que era um saco fazer isso, mas todos os anos ela voltava. Minha mãe a adorava, e quando ela fazia essa boa ação, só aumentava o carinho da velha.
Nick já foi se atirando pra cima da cama, apoiando-se nos cotovelos para olhar a estante-cabeceira da minha cama, onde eu enfileirava mangás. Milena tirou o tênis e se jogou em cima dele rindo escandalosamente, descuidando e mostrando um pouco da calcinha azul. Fiquei constrangido de ter olhado, mas logo fui para o lado da cama, onde não podia ver mais nada comprometedor do corpo dela. Nick lhe fez cosquinhas enquanto fingia uma voz de vilão de desenho animado, derrubando-a ao meu lado, onde ela ficou até o fim do dia.

- O que vocês fizeram ontem à noite? – Nick perguntou com a voz abafada pelo travesseiro, pois estava de bruços.

- Copiei Candlebox pro teu amigo aqui e comi Miojo... – respondeu Milena, sabendo muito bem que sua noite foi um tédio.

- Eu fiquei ligando que nem trouxa pra você, Nicolas. Tem celular pra que? Liguei na tua casa e tua mãe disse que você tinha saído.

- Saiu?  É assim, sai, não chama os amigos e ainda nem fala o que rolou? – Milena disse brincando, mas sem deixar de dizer toda a verdade.
- Me deixa contar, ué. Eu ia contar, foi o Du que estragou tudo. – Nick logo retrucou, sentando na cama e fazendo cara de satisfeito – Ontem tomei coragem e chamei a Achila pra ir à pracinha comigo, sabe, tomar um sorvete, conversar sobre qualquer coisa, sei lá. E ela fez umas graças, mas topou. E deu pra ver que ela fez questão de se arrumar mais um pouco pra me ver.

Ficamos embasbacados. Havia meses que o Nick e a metida da Achila ficavam de frescura, cheios de gentilezas e manhas, mas até agora, nada de muito concreto acontecia. Mi e eu sabíamos que ele nunca gostara assim de alguém antes, mesmo que Achila fosse de todo mundo. Mas dessa vez a coisa parecia ser diferente até com ela.
-Virou macho, Sir Nicolau? – Ri debochado. Nick detestava que o chamassem de Nicolau - E ai? Rolou alguma coisa?

- Ô se rolou! - Ele falava encantado – Foi incrível, cara! Aquela menina é o bicho, ‘tô te falando! A gente estava conversando sobre ela, sobre mim, e até falamos sobre vocês, paguei um sorvete pra nós e fui deixa-la em casa. Nos abraçamos, só que dessa vez segui o conselho da Mi e deslizei devagar as mãos até a cintura dela. Ela respirou de forma mais pesada perto do meu pescoço e murmurou alguma coisa, e quando me movi pra ouvir melhor, nossos lábios ficaram muito próximos, fechamos os olhos e foi a maior pegação ao som dos grilos.

- “Lábios”? –Mi enfatizou debochada - Ô Du, ele falou “nossos lábios ficaram muito próximos”! Acho que o Nicolas está mesmo apaixonado pela Hillary Duff!

Rimos como bobos a partir daquele momento, também falamos sobre a semana de aulas que se aproximava e as promessas que fizemos no réveillon, até que a noitinha veio chegando, soprando brisa morna nos nossos corpos sentados na calçada da casa do Nick, onde chegamos fazendo barulho nas ruas da cidade, abraçados uns com os outros e Milena, mais baixa, no meio de nós, fazendo uma ponte de amizade que na época era impossível perceber.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Vinicius

Eles sempre acham um lugar para viver sem medo; um cantinho que seja. Eu não. O tempo todo estou criando versões de mim mesmo, escolhendo qual é a melhor para o momento. Ninguém me vê de verdade.

Gritei, mas ninguém ouviu. Acho que é porque não imaginamos mesmo o que os outros pensam, ou talvez seja só egoísmo sobrando.

Morro um pouquinho todos os dias, planejando tudo com carinho. Morro um pouquinho mais ao prender a respiração.
Juro que não vi como isso cresceu, não sei como a dor se tornou do tamanho de algo maior que eu, maior que a alma, maior, tão maior... Ninguém me vê de verdade.

Não culpo ninguém. Isso é sobre o que eu fiz. Mas são detalhes. Os meus motivos são um detalhe. Não culpar ninguém talvez seja muito pior. Estar cego é bem mais duro, mas se vocês pensarem bem, nada de muito importante aconteceu hoje. E meus segredos morrerão comigo.
Talvez eu não tenha mesmo idade para saber o quanto a vida é dura. Mas não sou um completo imbecil. Mas a dor não para.

Não foi impulso. Tomei essa decisão bem consciente. Ninguém me vê de verdade.
E, ah! Desculpem pela bagunça. Depois dessa, jamais haverá outra.

domingo, 22 de abril de 2012

Summer Interior, de Edward Hopper

A gente cresce e nem vê. As coisas dentro da gente mudam tão devagar.
Me perdi por ai. Perdi mesmo. Mas consegui achar o fio para tentar achar a solução.
Aprender sobre pessoas é interessante, observar torna a gente meio frio e neutro até pra analisar a gente mesmo. E a gente descobre que quer mais é ficar cada vez mais ali, só olhando.
Não leio mais revistas adolescentes. Aos poucos meus sites em "favoritos" mudaram. Minhas roupas, minha lista de músicas, meus amigos. Os seus também. E mais um monte de coisa.

Não leio livros mais para provar coisas sobre mim, nem para competir. Não me visto para chocar. Não me torturo, mas não me safo de mim mesma. Meu corpo ganhou outros significados, morte, meu quarto, poesia e caixas com cartas também, estrelas não são só estrelas, falar não é só falar, café tem outro gosto, banho também. E mais um monte de coisa.
Não me assusta mais perceber que ficar sozinha é mais do que um desejo.

Quero mais é não ter essa sensação de estar sob observação, medo, vergonha...
Quero mais é acordar sozinha.
Quero mais é o que Hopper quis dizer.
Quero mais é me desprender.
Quero mais é olhar pra fora, transformar pra dentro e aprender.
Quero mais é café igualzinho ao da minha mãe. Quero mais é banheira, incenso e quadros de Hopper.

Gosto dele a ponto de batizar meu blog assim e cansei de esconder, sabe-se lá por quê.
E mais um monte de coisa.