quarta-feira, 2 de maio de 2012

Círculo de Cores pt III

Para a cidade, o carnaval foi um estouro. Para nós três foi um fiasco.

Eram umas duas da madrugada. Eu ainda fazia um trabalho da escola, de História, acho. Estava sem sono, e o som do axé rolando solto ao longe latejava na minha cabeça. Estava pronto para fazer o trabalho novamente em outras palavras como costumava fazer em favor ao Nick. No começo isso me irritava bastante, mas não me pergunte por que continuei a fazer os trabalhos por ele a ponto de não me importar mais.
Pensava que naquele exato momento ele estava dançando vergonhosamente com a sua Paris Hilton na avenida com a camiseta do bloco e que Mi estaria dormindo com os fones de ouvido ouvindo algo como The Cure, mesmo que apenas em subconsciente. Eu estava muito enganado. Logo eu descobriria.

Levantei para esticar o corpo. Passei realmente muitas horas sentado ali. Passando os dedos pelos cabelos, pensei que já estava na hora de cortar. Minha juba devia mesmo estar muito engraçada naquele momento. Acontece que meu cabelo é enrolado e cresce para cima e para os lados, e quando estou concentrado em alguma coisa mexo nele sem parar, enrolando os dedos nos cachos grandes e puxando depois. Milena também adorava brincar com meu cabelo, e uma das fotos que tenho dela no mural de feltro em cima da escrivaninha é uma em que estou sentado no chão, ela na cadeira da escola puxando um longo pedaço do meu cabelo e fingindo ser um bigode em seu rosto.  
Segui para o banheiro e tirei o aparelho da boca antes mesmo de acender a luz. Lavei o objeto de ferro passando a língua nos dentes, guardei-o na caixinha verde-limão e escovei os dentes ainda sensíveis pela força exercida entre eles. Eu estava muito estranho. Parecia cansado.
Quando voltei ao quarto, havia uma mensagem no celular. “Mi”.

Aquilo me preocupou. “Venha para cá agora.”
Quando ia responder perguntando o motivo, ela me mandou:

“O Nick tá aqui, fez merda. Tá muito bêbado e machucado. Vem logo.”
Vesti uma roupa qualquer e nem passei desodorante. Percebi que estava tremendo. Nicolas Ferraz. Machucado. Sai de casa sem tênis e na ponta dos pés. Não podia ser pego de jeito nenhum, mas não podia ficar. Calcei o tênis de qualquer jeito me apoiando no portão de casa e não pude deixar de imaginar quantas vezes vi o Nick me esperando ali.

Passei as ruas quase correndo, evitando passar por qualquer conglomerado de gente em festa, evitando as avenidas, mas sem evitar casais bêbados aos beijos, amigos em roda de maconha ou um ou outro vomitando nos bueiros. Respirava tão forte que por baixo da minha costela direita começava a doer aquelas dores agulhadas, que dói só de respirar. Mas não parei.

Quando cheguei à casa da Milena, mandei-lhe uma mensagem avisando que estava lá. Sabe-se lá sobre os pais dela. Vai que não sabiam sobre o Nick? Logo ela desceu com um short creme, chinelo e uma regata preta, sem sutiã. Reprimi-me por reparar nisso. As luzes estavam acesas e ela disse em alto e bom tom:
- Pensei que não viria, que não tinha lido a mensagem porque estava dormindo ou algo assim. Já ia te ligar.

Mi estava com parte do corpo molhado. Me mandou trancar a porta e seguiu para o banheiro.
- Mi, e teus pais?

- Esqueceu que todo carnaval eles vão para a casa da minha irmã ver o desfile das escolas no Rio?
-Putz, é mesmo...

No banheiro, Nicolas jazia nu no chão, molhado, com a cara horrível. Tinha um olho inchado, o nariz e o lábio superior sangravam. Ele estava chorando e dizendo coisas estranhas à Mi.
-Pelo amor de deus, Nicolas João Ferraz, por que diabos você saiu do chuveiro?

O chuveiro estava ligado. Nick resmungava coisas que apenas Mi parecia entender, até que ela o arrastou até o vaso sanitário, onde ele se agarrou e vomitou horrores.
-Mi...

-Não diz nada, Du... – ela parecia profundamente magoada com aquilo. – Essa menina só faz mal pra ele. Olha isso... – ela dizia com a mão nas costas do Nick - Quanta miséria. Ela o fez beber mais do que ele aguenta. E esse imbecil ainda arruma briga com moleque que vem pra cidade em grupinhos. Quero ver pra explicar isso pra mãe dele amanhã...
- E a Achila, cadê?

-Largou ele aqui e foi embora.

Ficamos um tempo olhando Nick com a cabeça apoiada nas beiradas do vaso. Mi o sentou com as costas apoiadas na parede, pegou alguns algodões e tentava conter os sangramentos. Então ela começou a chorar.
-Mi, vai separar uns remédios e alguma coisa levinha pra ele comer, deixa que eu cuido dele, aproveito e dou um banho nesse mané.

Ela levantou ainda chorando, se apoiando na parede acima das costas do Nick. Deu espaço para que eu levantasse o garoto e virou as costas, mas não saiu sem antes se virar e dar o maior tapa que já vi na vida. Pegou o rosto de Nick em cheio, e o barulho foi maior contando que ele estava molhando. Algumas gotas do sangue que escorria do nariz dele respingaram no chão. Nick apenas arregalou os olhos. Eu exclamei o nome dela num susto, e ela o olhava com raiva. Empurrei-a de leve com quatro dedos, indicando para ela sair, enquanto apoiava todo o peso do Nicolas do lado direito do corpo.
Ela saiu do banheiro ainda chorando e eu banhei o corpo do meu melhor amigo em água fria, o vesti com uma roupa que Mi trouxe, provavelmente do pai dela, e passei remédio nos cortes. Ainda no banheiro Nick finalmente adormeceu enquanto eu lhe secava os pés. No colo, levei-o para o quarto de Mi, onde ela estava sentada na cadeira da escrivaninha, com o nariz vermelho. Ela já tinha arrumado a cama para ele, onde o deitei e cobri.

- Esquentei umas gororobas na cozinha, mas ele nem vai acordar antes que o sol esteja alto.
Apenas sorri triste para ela. Era deprimente aquela situação. Mesmo. Sentei ao lado da cama dela, com a cabeça perto da do Nick, escutando sua respiração pesada.

-Que vexame, hein, amigão...? A Mi te vendo pelado...  – murmurei e ri baixinho com ela, que veio vindo para perto de mim, onde se aninhou no meu ombro úmido e agradeceu baixinho. Passei a mão num gesto acolhedor em braço nu e senti quando ela adormeceu.
Desencostei devagar dela, e coloquei um de seus ursos polares de pelúcia sob sua cabeça. Olhei em volta de seu quarto, olhando seus livros, pôsteres de ídolos, a bolsa jeans aberta. A última coisa que olhei foi a estante da parede onde ela enfileirava algumas bonecas, denunciando sua meiguice e infância.

Como num filme, lancei um olhar cansado para meus melhores amigos que dormiam, imaginei como eu deveria estar com a aparência horrível, apaguei a luz, fechei a porta, sequei o banheiro e fui embora sem fazer barulho algum.

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